O regime próprio de “proteção social” dos advogados é o último resquício de uma organização corporativa neste campo e nega na prática, a cerca de 40 mil pessoas, os direitos básicos à segurança social que a Constituição prevê. Trata-se de uma reminiscência dos tempos anteriores à democracia, que já devia há muito ter sido absorvida pelo Estado
Joana Varandas, advogada de 39 anos, morreu no mês passado vítima de um cancro que descobriu poucos dias depois de ser mãe. Com um bebé pequeno, trabalhou quase até morrer, sem qualquer apoio. O caso pôs a nu a realidade “medieval” (a expressão é da bastonária da Ordem dos Advogados) que esses profissionais vivem em termos de proteção social.
Ao contrário dos outros trabalhadores, advogados e solicitadores não descontam para a Segurança Social, mas para uma caixa própria (a CPAS), que não cobre os mesmos riscos do sistema público, nomeadamente em termos de doença ou parentalidade. É o último resquício da organização corporativa da proteção social e nega na prática, a cerca de 40 mil pessoas, os direitos básicos à segurança social que a Constituição prevê. Trata-se de uma reminiscência dos tempos anteriores à democracia, que já devia há muito ter sido absorvida pelo Estado, como aconteceu com outras caixas.
A CPAS, para a qual advogados e advogadas descontam de forma obrigatória, é profundamente classista. O desconto mínimo é de cerca de 270 euros por mês, independentemente de a pessoa ter tido ou não rendimentos. Pressupõe-se, no fundo, que advogados e solicitadores têm rendimentos elevados ou não dependem inteiramente do que ganham com a profissão. É uma forma de exclusão de quem é mais pobre, ou tem menos clientes, ou está a começar, num sistema que parece ter sido concebido para um tempo em que a advocacia se associava a uma pequena elite com poder económico. Ignora-se também que pessoas doentes sem outras fontes de rendimento precisam de ter um subsídio de doença.
A CPAS é ainda um sistema patriarcal e machista, criado numa época em que a advocacia era terreno masculino, em que se pressupunha que o trabalho de cuidados de crianças não seria uma preocupação para a classe (supostamente homens profissionais liberais), certamente contando com o trabalho não remunerado das mulheres na esfera doméstica. O “sujeito universal” imaginado pelo regime da CPAS ignora o corpo concreto das pessoas de hoje, pais e mães, com crianças a cargo e que precisam de subsídios de parentalidade para poderem acompanhar os filhos, como qualquer outro profissional. O sexismo que resulta da desconsideração das pessoas concretas que hoje exercem advocacia reflete-se também na impossibilidade de adiar, por direito, os prazos das diligências. Neste regime, é como se as mulheres trabalhadoras com as suas necessidades concretas permanecessem como um corpo estranho à profissão.
A nova bastonária da Ordem dos Advogados tem posto o dedo nesta ferida. Abalou o conservadorismo há muito instalado e vem defendendo a integração da CPAS na Segurança Social ou a liberdade de os advogados poderem escolher integrar-se na sistema público de proteção social, dando eco ao resultado do referendo sobre o tema, realizado em 2021 pela Ordem. O gueto laboral que exclui advogados de algumas das regras gerais do trabalho e da proteção social, a equívoca associação entre “profissão liberal” e autonomia técnica e deontológica, e a defesa da CPAS por parte de quem tem poder e benefícios com esse sistema, têm de ser postos em causa. É um regime anacrónico e discriminatório. E é difícil entender que um pequeno lobi venha conseguindo impedir a mudança democrática necessária que o Parlamento pode e deve fazer. Oxalá aconteça agora.